por Sandra Caselato (dezembro, 2025)

Quero começar confessando algo…
Durante um longo período da minha vida, estive tão desconectada de mim mesma que eu simplesmente não sabia quem eu era.
Não sabia o que eu precisava.
Não sabia o que eu sentia.
Não sabia o que era importante para mim.
E essa desconexão era tão profunda que aparecia até nas coisas mais simples. Eu não conseguia nem escolher o sabor de um sorvete.
Chocolate?
Morango?
Eu travava.
Parecia uma missão impossível.
Esse pequeno detalhe era um sintoma de algo muito maior: eu tinha perdido acesso à minha própria voz.
Eu não tinha conflitos na minha vida não porque eu era tranquila ou porque tudo estava bem.
Eu fugia de conflitos porque eu tinha medo de ser vista de verdade.
Medo de desagradar.
Medo de perder relações.
E, nesse processo, eu fui me perdendo de mim mesma.
Foi então que eu conheci a Comunicação Não-Violenta.
E ela não me ensinou técnicas.
Ela me ensinou a me reencontrar.
O preço silencioso de evitar conflitos
Por muito tempo eu fui aquela pessoa que sempre dizia:
“Por mim, tanto faz.”
“Eu me adapto.”
“Não se preocupe.”
Por fora, parecia harmonia.
Por dentro, era uma guerra silenciosa.
Essa falsa paz me custava caro: relações verdadeiras, oportunidades, coragem, autenticidade.
Quando vivemos para não desagradar, desaparecemos aos poucos.
E foi exatamente isso que aconteceu comigo:
eu já não sabia mais onde eu terminava e onde começava o mundo ao meu redor.
O aumento dos conflitos
Quando comecei a estudar CNV, imaginei que me tornaria uma versão mais tranquila de mim mesma.
Mas o que aconteceu foi o contrário.
Quando comecei a viver CNV de verdade, os conflitos aumentaram.
Porque comecei a aparecer.
A assumir posição.
A nomear necessidades.
A dizer o que eu sinto — e não apenas o que esperam que eu diga.
E aparecer dá trabalho.
Dá medo.
Dá tremedeira.
Mas também dá vida.
O dia em que algo virou dentro de mim
Eu nunca me esqueço de um momento em um curso que eu estava fazendo.
O grupo dava feedback a uma pessoa de um modo que achei tão descuidado que parecia mais um ataque coletivo do que um processo de aprendizagem.
Meu corpo reagia: ombros tensos, agitação, palpitação, respiração curta, um nó no estômago, e até enjoo.
A antiga Sandra teria permanecido em silêncio, esperando tudo acabar. Ainda mais numa sala de aula, num grupo grande de pessoas.
Mas naquele dia, algo dentro de mim disse: “Se você não falar, você vai se perder de novo.”
Respirei fundo, criei coragem e levantei a mão.
Falei vulnerável.
Falei inteira.
Falei do que meu corpo estava vivendo.
E algo inesperado aconteceu:
As pessoas se conectaram.
Houve reconhecimento, abertura, aceitação — e principalmente, houve mudança.
O grupo se reorganizou e definiu novos acordos de como dar feedbacks — com cuidado, atenção, respeito.
Várias me disseram depois: “Eu também estava me sentindo mal, mas não tive coragem de falar.”
Naquele momento eu compreendi:
o diálogo não começa quando todo mundo está confortável;
ele começa quando alguém decide aparecer primeiro e se expressar.
26 anos de conflitos vivos
Essa transformação atravessou também a relação mais importante da minha vida: com Yuri.
Somos casados há 26 anos e trabalhamos juntos com comunicação não-violenta e mediando conflitos no Brasil e no exterior. E, por isso, as pessoas sempre perguntam: “Então vocês nunca brigam?”
E a nossa resposta é: “Brigamos… cada vez melhor.”
Porque tudo que é vivo entra em conflito.
Até as plantas entram em conflito.
Só não entra em conflito aquilo que já morreu.
O conflito é a vida pedindo ajuste.
E o diálogo é onde esse ajuste acontece.
A CNV nos deu ferramentas para atravessar divergências sem nos perdermos um do outro e sem nos perdermos de nós mesmos.
Casamento não é ausência de conflito. É presença de diálogo.
Ressignificando o conflito
Hoje, enxergo o conflito como um sistema vivo de feedback.
É assim que pessoas, famílias, equipes e comunidades podem ajustar suas relações.
Conflito não é ruptura.
Conflito é oportunidade.
É a vida pedindo passagem.
E depois de tantos anos vivenciando a CNV, entendi que o diálogo é essencial para manter a vida humana viva.
É o diálogo que permite ajustar, revelar o que não está sendo visto, pertencer, reconstruir, cuidar.
Num tempo marcado por polarização, desinformação e individualismo, o diálogo se torna também um ato de resistência — e de humanidade.
O que em você está pedindo para ser dito?
Hoje sei que meu maior conflito não era com o sorvete.
Nem com os outros.
Nem com o Yuri.
Era comigo mesma.
Era aprender a me escutar.
A me posicionar.
A aparecer — mesmo com medo.
E talvez a pergunta que eu quero deixar para você seja esta:
O que está pedindo para ser dito na sua vida?
E o que poderia mudar se você dissesse…
antes de derreter como um sorvete?


