CNV – Transformando Consciências, Relações e Sistemas

A Comunicação Não-Violenta (CNV) foi desenvolvida, em parte, porque seu fundador, Marshall Rosenberg, se inspirou no trabalho do Mahatma Gandhi, Dr. King e muitas outras pessoas que responderam pacificamente e, no entanto, poderosamente, a vastos abusos e desigualdades sistêmicas. Dr. Rosenberg testemunhou o poder transformador que um compromisso ativo e corajoso com a não-violência pode despertar. Como Dr. King, ele também acreditava que a transformação duradoura se origina não apenas na criação de mudanças externas, mas no trabalho para que essa mudança se origine de um lugar que acolha a humanidade de todas as pessoas.

Conforme os ensinamentos do Dr. Rosenberg sobre a Comunicação Não-Violenta se disseminaram, eles se afastaram, em muitos locais, da força poderosa de transformação social que ele imaginou. Muitas das pessoas que aprenderam este trabalho faziam parte dos grupos sociais dominantes em seus tempos. Nos Estados Unidos, o método de ensino baseado em workshops ressoou mais frequentemente em audiências brancas, de classe média, que tinham tempo, escolaridade e dinheiro para participar e que, na maior parte das vezes, buscavam pela liberação pessoal para a qual a consciência da CNV convida. Pessoas menos impactadas pelas desigualdades sociais tendem a focar nos aspectos de crescimento pessoal ou transformação interna oferecidos pela Comunicação Não-Violenta. Elas aplicam os conceitos da CNV às questões relevantes para seus mundos, sem consciência dos modos pelos quais suas perspectivas, moldadas pelos assuntos e ambientes que conhecem, representam apenas uma pequena fração do poder da CNV. Como resultado, uma crítica frequente é que ela ignora ou minimiza questões de raça, classe e outras diferenças sociais. Essa é uma falha na maneira pela qual a CNV tem sido aplicada e ensinada, não da abordagem em si.

À medida em que a CNV começou a se espalhar para comunidades menos privilegiadas, alguns dos modos pelos quais a sua prática se tornou restrita pelo status relativamente privilegiado daqueles que a praticavam se tornaram mais claros e até controversos, nos círculos que a praticam. Um exemplo é a exploração das “necessidades” no pensamento da Comunicação Não-Violenta. Nele, as necessidades são compreendidas como sendo aquelas qualidades vitais abstratas, como contribuição, respeito e compreensão, que todos os seres humanos buscam. Um princípio fundamental da CNV é que todas as ações humanas são tentativas de satisfazer necessidades. Todas as pessoas alinhadas com o pensamento da CNV acreditam neste axioma fundamental. Contudo, as implicações dele são vastamente diversas quando aplicadas com ou sem uma lente social. Como as pessoas interpretarão e se comportarão em relação a este axioma fundamental em relação às classificações sociais pode ser predito à partir de seus estágios de conscientização sobre as diferenças sociais.

Alguns praticantes com uma compreensão limitada das diferenças entre grupos assumem a crença de que todos os seres humanos têm as mesmas necessidades e que todas as necessidades são iguais, e então a aplicam a todas as interações. Estes praticantes, ao abordarem um conflito, por exemplo, em uma sala de aula entre um aluno negro e um professor branco, tendem muito mais a insistir que as necessidades do aluno e as do professor são iguais e que, portanto, devem ser respondidas com igual atenção e sem considerar poder ou privilégio. Eles podem alegar que, já que as necessidades de todas as pessoas são iguais, a pessoa que é historicamente menos privilegiada pode e irá comunicar suas necessidades e é igualmente capaz e responsável por ter suas necessidades atendidas, não importa seu poder real de influência sobre a situação. Quando realizada desta forma, a CNV ignora os efeitos da opressão sistêmica e da história pessoal. Ela não reconhece os diferentes graus de dificuldade que o aluno pode ter em confiar que suas necessidades importam para os outros. Ele pode estar se arriscando muito mais ao comunicar e defender suas necessidades. O aluno tem que lidar com o fato (que o professor talvez nem tenha razões para considerar) de que, quando pessoas do seu grupo falam, elas são, com frequência, ignoradas, quando não punidas ou até mesmo mortas. A aderência a esse foco restrito sobre a igualdade de todas as pessoas e necessidades é uma função da pouca consciência crítica de alguns praticantes, e não uma limitação da Comunicação Não-Violenta em si.

Praticantes da CNV com mais consciência crítica são capazes de aplicá-la em sua potência total. Quando a CNV argumenta que as necessidades de todas as pessoas importam, aqueles com um referencial intercultural mais avançado entendem como um chamado para oferecer às pessoas as ferramentas e o apoio de que elas necessitam para garantir que suas necessidades sejam, de fato, acolhidas com cuidado. Eles estão atentos à diferença entre igualdade e equidade e podem oferecer muito mais atenção e apoio a membros de um determinado grupo, a fim de garantir que suas necessidades emerjam e sejam cuidadas, em relação a um outro grupo que tem mais poder estrutural, para que a equidade seja atingida e todas as necessidades sejam acolhidas com cuidado. Os praticantes da CNV devem estar atentos às inequidades sistêmicas que continuam a persistir entre grupos e a abordarem e considerarem estes desequilíbrios, se realmente desejam dar prosseguimento ao trabalho que Dr. Rosenberg iniciou. De fato, pode ser prejudicial nos focarmos em uma igualdade simplista que ignora as estruturas sistêmicas. Tal foco pode levar à ideia de que o indivíduo é responsável por todas as circunstâncias em que se encontra, sem consideração ao fato de que indivíduos têm acessos vastamente diferentes à influenciar estas circunstâncias. A crença de que empoderar pessoas a reconhecer e defender suas necessidades não-atendidas é suficiente para superar iniquidades sociais, sem reconhecer as diferenças de poder social e político que os indivíduos possuem, carrega o risco de colocar a responsabilidade por ter ou não ter suas necessidades atendidas apenas no indivíduo e para longe do sistema como um local de mudança.

Tragicamente, alguns praticantes de CNV se focam na transformação de escolhas pessoais como a única maneira de abordar a violência estrutural. Por exemplo, eles podem sugerir que, se uma mulher está em uma relação na qual seu parceiro satisfaz suas próprias necessidades de “segurança” e “respeito” controlando o comportamento dela, ela tem a opção de deixá-lo, se a estratégia dele não funcionar para ela. Ainda que isso seja tecnicamente verdadeiro – todas temos a opção de ir embora – é uma compreensão fundamentalmente falha e limitada do que a CNV oferece em situações semelhantes. Ao focar-se apenas no comportamento da mulher nesta situação, o praticante falha em reconhecer a miríade de fatores que podem estar restringindo a escolha de mulher de abandonar seu parceiro ou de defender-se. Não está fora da alçada da CNV chamar o parceiro à responsabilidade pelo impacto de sua ação sobre esta mulher. Um praticante de CNV que está atento a como as normas relacionais tradicionais restringem a liberdade das mulheres pode convocar o parceiro a interromper o comportamento coercitivo ou pode apoiar a mulher a deixá-lo, com compreensão das barreiras que ela poderá ter que enfrentar. Um praticante sem esta consciência pode aplicar o referencial de sustentar a igualdade entre as necessidades de ambos os parceiros, sem reconhecer as diferenças nos impactos e no acesso ao poder e, assim, reforçar, inadvertidamente, os aspectos negativos das normas relacionais tradicionais.

Praticantes que estão totalmente embasados em uma compreensão sobre como as diferenças sociais têm atuado em suas sociedades podem aplicar a CNV melhor, de uma forma que maximiza seu potencial de mudança. Podemos aplicá-la para empoderar indivíduos e apoiá-los a enfrentar a injustiça, arcando com os custos de fazê-lo, da mesma forma que gerações de pessoas embasadas nos trabalhos de Mahatma Gandhi e Dr. King fizeram. Podemos usar a CNV para defender que mais necessidades sejam satisfeitas para mais pessoas. Podemos utilizar nossa compreensão dos sistemas que causam inequidades para dirigir recursos para transformar esses sistemas. Apenas empoderar pessoas ou apenas confrontar sistemas é incompleto. Ao ignorarmos o sistêmico, essencialmente permitiremos que as necessidades de alguns grupos continuem a ser sistematicamente não satisfeitas. Contudo, não podemos esperar que os sistemas mudem para que comecemos a empoderar indivíduos e comunidades, a cultivar as habilidades e a esperança necessárias para curar nosso mundo.

Participantes em um retiro de CNV experimentaram o poder de focar tanto no interpessoal, quanto no sistêmico. Um deles, um jovem afro-americano que estava pela primeira vez na costa leste, entrou numa mercearia em uma vizinhança rica da Califórnia do Norte com outro homem negro. Quando tentou fazer uma retirada de dinheiro no caixa, ele foi informado que teria que voltar em 15 minutos, porque a máquina não estava operando. Quando ele voltou, foi abordado por um policial. A caixa havia chamado a polícia porque acreditava que ele havia roubado a loja previamente, baseada apenas na cor da sua pele. O policial pediu seus documentos. Alguém que ouvisse essa história sem a lente da justiça social poderia acreditar que foi um simples caso de identificação equivocada. O participante afro-americano poderia simplesmente entregar sua carteira de identidade e o erro seria corrigido. Ele poderia voltar ao retiro de CNV e receber empatia pela dor e pela raiva estimuladas por esse evento, direcionada ao seu impacto individual. Ao olharmos através de uma lente na justiça social, surgem muitas preocupações em relação a essa estratégia, dado a longa história de homens afro-americanos sendo acusados e incapazes de limpar seus nomes, apesar de provas abundantes de sua inocência. Além disso, simplesmente cuidar do impacto deste evento através da empatia e do apoio individual não faria nada para prevenir que uma experiência similar vitimasse o próximo homem negro que entrasse na loja.

Alternativamente, o homem nesta história e os participantes do retiro usaram o poder total da CNV para apoiar tanto o indivíduo, quanto a necessidade de mudança sistêmica. Ao invés de entregar suas identidades, os dois jovens apoiaram um ao outro enquanto expressavam sua dor e tristeza pela acusação por roubo feita ao homem negro simplesmente devido a sua cor. Eles empatizaram com o policial tentando fazer seu trabalho e, ao mesmo tempo, insistiram em serem tratados com dignidade e respeito. Ao final, frente a sua insistência não-violenta em terem seus direitos honrados, o policial foi capaz de reconhecer as circunstâncias frágeis que levaram a caixa a chamá-lo e os homens puderam ir embora sem entregar seus documentos. Eles voltaram ao retiro e, então, realmente alavancaram o poder da comunicação não-violenta. Após terem apoio empático da comunidade, o jovem afro-americano expressou seu espanto por ter tido, pela primeira vez na sua vida, um encontro com a polícia que não resultou em consequências severas para ele e pelas outras pessoas da comunidade terem sido capazes de compreendê-lo e apoiá-lo. Então, todos se juntaram para identificar as necessidades não satisfeitas tanto do indivíduo, quanto da comunidade mais ampla. Eles decidiram protestar não-violentamente contra o que aconteceu e convocar a loja e o departamento de polícia local a mudarem suas políticas. Mais de 30 participantes do retiro foram até a loja e aguardaram, enquanto o jovem, um facilitador e um membro da comunidade conversavam com o gerente. Eles foram capazes de expressar o impacto de terem experimentado essa situação e asseguraram o compromisso do gerente da loja de levar esta questão à gerência geral, juntamente com os pedidos por educação e mudança. Ao focarem no apoio ao indivíduo numa situação desafiadora e, então, identificarem e desafiarem os padrões de discriminação que levaram a este evento, o homem negro e os participantes do retiro foram capazes de aplicar a CNV e uma lente de consciência crítica para pedir por mudanças que podem impactar muitas pessoas.

É importante reconhecer que, por serem constituídos por pessoas, os círculos de CNV refletem as sociedades mais amplas das quais fazem parte. Mesmo enquanto se esforçam por mudar a forma como respondem aos seus ambientes usando a CNV, seus praticantes ainda podem estar cegos para as formas nas quais seu foco é limitado por uma visão de mundo não examinada ou questionada. Conforme o número de praticantes da CNV que se tornam criticamente conscientes cresce, eles estarão mais aptos a intervir, não apenas no nível pessoal, mas também no sistêmico. Quando isso acontecer, nós finalmente manifestaremos a visão de mudança individual e sistêmica do Dr. Rosenberg, em direção a um mundo mais igualitário e não-violento.

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