No texto de hoje, queremos compartilhar com vocês uma experiência pessoal do Yuri Haasz, para ilustrar a importância de distinguirmos entre fatos observáveis, reais, concretos e comprováveis, e tudo aquilo que não são fatos, mas estórias, interpretações, suposições, avaliações, narrativas, teorias, etc.
Distinguir fatos de julgamentos é uma das bases da Comunicação Não-Violenta (CNV), que se caracteriza por cerca de 25 distinções chave – portas para melhorar nossas relações através da ampliação da nossa percepção e consciência sobre nós mesmos, os outros e o mundo.
No texto, Yuri nos conta de sua memória mais antiga, aos 2 anos de idade, dentro de um abrigo anti-aéreo no Oriente Médio, e mostra como as narrativas que construimos sobre nossas vivências pessoais e coletivas produzem nossa visão de mundo, e como essa visão de mundo pode contribuir para a paz e a esperança ou para a guerra e o conflito.
A Comunicação Não-Violenta abriu para o Yuri as portas para uma esperança renovada e, da mesma forma, acreditamos que ela pode apoiar muita gente em suas vidas.
“Em minha primeira memória de infância, estou com muitas pessoas num lugar escuro e fechado, onde medo e tensão pairam no ar. Estávamos em um abrigo antiaéreo. Era 1973 e Israel, onde nasci, estava em guerra. Ao longo da minha vida, este e outros eventos foram costurados numa narrativa de um ‘outro’ que queria nos matar. Nós, judeus, tínhamos então que nos defender para sobreviver. Essa história onipresente se confirmava em livros escolares, notícias jornalísticas e conversas familiares.
Décadas depois, mergulhado num mestrado sobre a questão da Palestina, meu mundo se desfez. Em pesquisa de campo, trabalhando com direitos humanos e estudando os ‘novos historiadores israelenses’ descobri que uma série de fatos haviam sido ocultados da narrativa com a qual cresci. Arquivos do governo foram legalmente mantidos em segredo por décadas, desde a fundação de Israel em 1948. Mesmo depois de virem a público, ainda hoje são continuamente negados e ocultados pelas instituições oficiais, mas podem ser confirmadas por testemunhas e pelas evidências de aldeias palestinas destruídas.
Para criar Israel, as forças nacionalistas judaicas elaboraram o chamado ‘Plano Dalet’, uma expulsão sistemática da população palestina de suas terras. Planejaram massacres estratégicos para que a população restante ficasse com medo e fugisse. Foi uma limpeza étnica.
Foi assim que minha família ‘herdou’ Israel e como meu mundo veio a existir; porém, essa não foi a história que me contaram. Cresci acreditando que a raiva dos palestinos contra nós era preconceito e antissemitismo, sem nenhuma explicação factual.
Ao descobrir que havia motivo para a frustração dos palestinos, tive uma crise de identidade. Comecei a repensar minha vida e o que quero para mim e para outras pessoas neste mundo. Passei a falar abertamente sobre os fatos que descobri, me engajei em projetos de direitos humanos e em diálogos difíceis visando mudanças. Buscava justiça, reparação para os palestinos, e novas estratégias para a autonomia judaica que não infligisse dominação sobre outro povo.
Minha compreensão anterior de mundo havia sido totalmente moldada pelas lentes de uma história única. Julgamentos, teorias e suposições preenchiam as lacunas entre os eventos do mundo real para criar a narrativa dominante da nação onde nasci. Quando comecei a focar minhas lentes pessoais nos fatos observáveis, se revelou uma realidade compartilhada por fontes de ambos os lados: acadêmicos judeus críticos que ousaram desafiar a narrativa nacional depois de analisar evidências de arquivos israelenses, ao lado de depoimentos, documentações palestinas e evidências em campo.
Quando minha consciência despertou para a distinção entre os fatos reais e a estória com a qual cresci, minha identidade, quem eu era e como eu via ‘o outro’ mudou. Também mudaram as soluções eu gostaria de ver acontecer no mundo.”
E você? O que percebe de diferente em sua vida quando busca olhar para o mundo buscando distinguir fatos de julgamentos?
*Texto originalmente publicado na Revista Bons Fluídos/Viva Saúde. Escrito por Sandra Caselato e Yuri Haasz.